Se o comportamento humano já era algo extremamente intrigante aos psicólogos, imagina o comportamento de BILHÕES DE PESSOAS mergulhados ao mesmo tempo em uma PANDEMIA!

O desafio de se manter em quarentena foi o que motivou essa reflexiva conversa com meu amigo e competente psicólogo Willian Xavier.

Silvia: Uma das coisas mais visíveis do isolamento social foi é mudança de rotina. Não saímos cedo para ir à escola, não tem mais aula de inglês em um bairro, fisioterapia no outro, visita na casa da família toda, etc. No geral, não temos mais uma agenda lotada de compromissos como antes. O quê, na sua percepção, este movimento em específico nos trouxe?

 

Willian: A própria etimologia da palavra isolamento – “isola=ilha” é capaz de nos revelar. É o Eu concreto com tudo o que me cerca e invade constantemente. É o Eu com minhas faltas, vazios e excessos mais profundos sem conseguir dar vazão a eles onde normalmente se dá, ou seja, no mundo externo. Nos trouxe ao invés dos compromissos cotidianos externos, talvez um outro mais difícil, porém não menos importante, que é o compromisso de se havermos com nós mesmos.

Este mal-estar que se revela nas condições de convivência com os demais diante do enclausuramento, talvez seja um reflexo das características sociais que vivemos na atualidade. Uma sociedade pautada no narcisismo e individualismo, onde a eliminação do outro que restringe a possibilidade da minha satisfação, se torna imperativa. Na busca que este outro pense igual a mim ou seja submisso a mim, frente à uma resposta quase sempre negativa por parte deste, faz com que o mesmo se torne então, apenas um objeto onde me permito fazer tudo que quiser para alcançar minha própria e imperativa satisfação. Em uma “sociedade do espetáculo” onde vivemos e pautada pelos excessos, a impossibilidade da circulação da palavra entre membros de um mesmo clã, impede que se façam acordos e leis de boa convivência. Disto, restam às barbáries de violência e intolerâncias que tão comumente, e infelizmente, estamos vendo. O ódio que ocorre no externo aos tratados erroneamente como “diferentes” ou de menos valia (negros, comunidade LGBT, pobres dentre outros), na impossibilidade desta vazão, tornam o ódio ao que está mais próximo no cotidiano, sendo mais comumente as esposas e filhas dentro dos próprios lares, retratando assim o crescente número de violência doméstica e abusos sexuais expostos.

Pois bem. Este sufocamento acrescido ao sentimento de culpa frente à impotência que nos encontramos no momento, nos faz inconscientemente darmos novas roupagens e fantasias aos nossos sintomas psíquicos, fazendo com que ocorra um des-encontro comigo mesmo, agora um estranho que não se reconhece. Como diria Contardo Calligaris, “quem fala em nós são os fantasmas”.

O medo de lidarmos com aquilo que as paredes, espelhos e os Outros do isolamento social nos revelam e escancaram em nossa cara, impedem de nomear e re-significar nossos fantasmas e desejos que são presenças constantes em nossa mente. Por falta de um luto anterior infantil, ou seja, por falta da instauração de uma lei ou figura que dá borda aos impulsos e instintos naturais à todo sujeito (com o declínio da função paterna contemporânea), se torna necessário passarmos por um luto deste nosso “Eu ideal” no atual momento, ou seja, já adolescente ou adulto. Á partir de então, podemos re-elaborar e re-significar o que de fato buscamos e desejamos, e por onde queremos direcionar nossos impulsos pessoais, tomando conta de nosso próprio destino e responsabilidades. Junto, desvendamos nossas fantasias e reconhecemos a existência dos outros que nos cercam, e que respectivamente também são seres desejantes e com propósitos, cabendo então definitivamente o respeito a este não mais “diferente”, e sim semelhante com suas singularidades.

Outro movimento que muito naturalmente ocorre na devida situação, em especial com pais que possuem filhos adolescentes em casa, é o de estes mesmos pais darem de cara com aquilo com aquilo que não foi bem resolvido em sua própria infância/adolescência. É muito natural que diversos tipos de projeções ocorram dos pais para/com seus filhos equivocadamente e inconscientemente, para que estes possam dar conta dos sonhos, fantasias e desejos que ainda não conseguiram reconhecer e resolver. O contrário também ocorre, ou seja, a idealização por parte dos filhos adolescentes dos “pais ideais”, especialmente quando há a comparação com os pais de outros amigos e colegas. As mudanças do mundo pós-moderno se encarregam de acentuar ainda mais este sintoma, visto as necessidades enfrentadas por parte dos pais para darem conta de uma vida congestionada, sobrando pouco tempo para serem verdadeiramente e unicamente pais presentes. O Pai (e suas representações diversas na cultura) hoje não é mais encarado como o todo poderoso, e sim o Eu toma este lugar de onipotência, o que causa esta série de problemas narcísicos, individualistas e onipotentes que comentamos anteriormente.

Estes excessos de obrigações em que a cultura de nosso mundo atual nos coloca, em posição de produtividade constante, impede a possibilidade de darmos vazões naturais aos nossos impulsos e desejos. A prática, muitas vezes terapêutica do ócio criativo (seja ele das mais variadas formas e subjetividade possíveis), é totalmente refutada pelo sentimento de culpa que toma conta pelo imperativo de produtividade não estar sendo realizado. Assim, os momentos onde a palavra e a simbolização circulam em um ambiente familiar, auxiliando para a escuta das necessidades e vontade de cada um  para a boa convivência, são impossibilitados e colocados em último plano. Temos visto o quão prejudicial, sejam nos corpos ou nas mentes, tem sido os excessos produtivos exigidos pelo mundo pós-moderno. Sem os momentos de pausas para autoconhecimento ou reflexões, seja individual ou em família, o destino sempre acaba cobrando bastante caro.

 

Silvia: A convivência forçada com familiares (marido, esposa, filhos, pais, irmãos) revelou muitos problemas de relacionamentos que antes talvez fossem distraídos pelo corre-corre do dia a dia. Me parece que este pode ser um dos principais fatores das pessoas não conseguirem se manter no isolamento. Mas, Willian, me diga…o que veio antes, o ovo ou a galinha…ou seja, os conflitos apareceram por causa da maior convivência ou eles já estavam ali antes da pandemia, só que escondidos?

 

Willian: Podemos pensar que por ambos os casos e motivos Silvia. Os conflitos já existiam sim, devido a estrutura elementar e subjetiva de cada indivíduo. Porém a maior convivência forçada acentua e empresta novas caras e modus operandi aos sintomas de cada um.

É importante compreendermos que o normal é o a-normal, ou seja, uma vida com conflitos. A vida de perfeição que nos é vendida em revistas, televisão e mídias sociais tem caráter puramente ideológico e comercial, pois o real sempre nos mostra que o andar da carruagem é completamente diferente. Como dirá Calligaris, “o imperativo da tolerância, acaba gerando o ódio”, e portanto traz junto o sofrimento.

A única relação de completude possível, e portanto imperfeita, encontramos na psicose, onde um sujeito se funde à sua primeira cuidadora, privando-se de constituir sua própria linguagem de mundo por esta que impediu o descolamento precoce, tomando também por sua vez a criança como pura extensão de seu desejo. Fora isto, somos todos constituídos pela falta primordial e necessária, para que possamos nos tornar seres desejantes e sempre em busca de algo. Assim, estruturalmente somos conflitos com nossos próprios anseios e com os outros, pois nem sempre o mundo e a cultura nos permitem realizarmos da forma que almejamos nossas fantasias pessoais. Mesmo assim, continuamos em busca, o que é primordial e fundamental para vivermos.

É possível vivermos com os conflitos familiares bem como vivermos com nossos próprios conflitos pessoais. Os sentimentos de amor e ódio são constantes desde nossos primeiros momentos infantis. O que resta, é a assunção de responsabilidade de cada um pelo seu próprio anseio e desejo, reconhecendo o mesmo e se implicando com as consequências que o mesmo traz.

É também à partir desta implicação com nossas questões, que passamos a evitar aquilo que de forma inconsciente dita as regras de nossas vidas, sem se quer nos darmos contas. Estas são as REPETIÇÕES. Quem nunca cometeu atos repetidas vezes dos quais não gostaria de cometer, onde os mesmos definiram destinos agora impossíveis de serem concertados, não é mesmo? Pois bem, para os conflitos relacionais estas repetições também podem ser evitadas e encardas de formas diferentes, quando por exemplo em psicoterapia, o psicólogo auxilia o paciente a fazer-saber suas questões recordando, repetindo e elaborando, para que à partir de então esta mesma pessoa possa saber-fazer diferente e cessar a repetição inconsciente e constante.

É muito comum casos de depressão entre os adolescentes atualmente, o que como verificamos, se acentuou frente o isolamento proposto. Estes adolescentes porém, já possuíam uma estrutura depressiva. Acontece que, muitas vezes, esta é suprida pelos pais através de um engajamento dos filhos em diversas atividades corriqueiras, como esportes, cursos, jogos e demais atividades, que permitem mascarar por breve tempo a falta excessiva que ali está posta neste adolescente. Com o enclausuramento, acontece que esta pulsão deste adolescente que antes era dirigida para fora e sublimada, agora retorna ainda mais ferozmente para o próprio ego deste indivíduo, tornando-se insuportável lidar com tamanha invasão e confusão de sentimentos não simbolizados, aparecendo assim a angústia e consequente adoecimento. É importante termos em mente que todo excesso, esconde uma grande falta.

 

Silvia: O que fazer com todas estas descobertas de mim mesmo e os meus relacionamentos? O que é possível explorar sozinho e quando é preciso buscar ajuda de um psicólogo?

Willian: O sofrimento, em certa dose e dimensão, não é doença. Ele é parte natural da existência de cada um de nós, e quando bem utilizado, pode ser uma ótima bússola para o autoconhecimento. Apesar da “cultura positivista americana dos 10 passos” que vemos em abundância frente a busca da felicidade emergente, sempre há algo do real que bate em nossa porta e retorna trazendo a angústia. Lacan definirá que “a angústia é o único afeto que não mente”. É preciso que os indivíduos se permitam falar sobre ela com um profissional.

A psicanálise por sua vez, permite ao paciente se reconhecer na sua dor. É à partir de sua fala e desvelamento de seu inconsciente, que o analista auxiliará ao mesmo reconhecer-se e se haver com suas angústias, faltas e excessos. Permitirá a este sujeito SE ESCUTAR. O final de um processo de análise consiste na “travessia do fantasma”, e logo das fantasias de cada indivíduo que é, ali, tratado como singular e único, sempre sem qualquer espécie de julgamentos, à partir de sua história particular de vida.

Se implicar com seu desejo, que por vez é sempre inconsciente, é fundamental para amenizar os sofrimentos e lidar da melhor forma com as novas descobertas, pois é através do desejo que somos movidos adiante. Lacan questiona: “Você realmente quer o que você deseja?”, ficando tal questão para refletirmos.

Procurar o auxílio de um profissional da Psicologia é sempre fundamental, mesmo em momentos pré ou pós pandêmicos. Sempre há questões que nos atravessam e implicam para serem expostas sem julgamentos, podendo assim serem ressignificadas, à fim de darmos novas diretrizes e dimensões as constantes repetições involuntárias que muito nos controlam, e consequentemente, termos mais controles sobre nossos destinos.

 

“Amar é dar aquilo que não tem, aquele que não quer” Lacan.

Quem quiser conhecer mais o trabalho do psicólogo Willian Xavier, acesse o Instagram @psicologowillianxavier.